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O papel da comunidade negra no sucesso da Timberland

história da bota timberland

Em 1973 começou a história da bota Timberland, criada em New Hampshire, e no mesmo ano o Hip-Hop nasceu no Bronx, em Nova York. Mas não é só o ano de nascença que esse ícone da moda e o estilo musical tem em comum. 

No decorrer do tempo ambos se fundiram naturalmente graças à comunidade negra e estão interligados até os dias de hoje.

Entenda melhor como tudo isso aconteceu.

Nasce uma estrela: o começo da história da bota Timeberland

A famosa Yellow Boot da Timberland nasceu em 1973, pelas mãos de um pequeno sapateiro que morava na Nova Inglaterra.

A sua missão com a criação dessa bota era produzir um sapato à prova d’água e que poderia resistir a qualquer tempo ruim, se tornando, em pouco tempo, um sapato muito usado por pessoas que trabalhavam em fábricas ou construções. 

Conforme foi se tornando popular, a marca começou a traçar estratégias para atrair clientes da alta sociedade, publicando, em 1988, anúncios em revistas lidas por essa classe e reforçando a beleza e o conforto dos pares.

Do luxo ao gueto

Ainda no final dos anos 1980, a história da bota Timberland começa a virar internacional.

Registros do The New York Times contam que na capital da moda, Milão, os adolescentes roubavam para poder comprar o seu par de Timberlands.

Eles também contam que comissários de bordo americanos compravam diversos pares de Timberlands e as revendiam pelo dobro do preço na Itália.

No Reino Unido e no Japão as Yellow Boots também eram febre, levando a um aumento das vendas da marca em 1988, saltando de US$48 milhões para US$138 milhões, de acordo com o The Boston Globe.

Isso permitiu com que a marca conseguisse abrir sua segunda loja principal, sendo que a primeira ficava em New Hampshire, onde ela foi criada.

E o local escolhido para abertura dessa segunda loja foi no Upper East Side, em Nova York, onde estão as marcas de moda mais caras do mundo.

De fato, as vendas foram um sucesso. Mas os clientes não eram exatamente os que a marca esperava, pois se tratavam de traficantes de Nova York, algo que deu um novo rumo a história da bota Timberland. 

Cê disse que era bom e as favela ouviu

Mesmo que os traficantes de droga de Nova York estivessem à margem da sociedade, eles tinham dinheiro suficiente para ir ao local mais caro da cidade para fazer compras em marcas de prestígio, portanto, se tornaram os principais compradores da loja da Timberland. 

Aqui vale um destaque principalmente para os jovens do Harlem, que fizeram as Yellow Boots da Timberland terem um valor significativo em bairros predominantemente negros.

E a preferência dos traficantes pela bota vai muito além da sua estética e popularidade na época.

Ela era a melhor opção para eles justamente por ser extremamente confortável e resistente a qualquer condição climática, dois pontos que eram fundamentais para eles, uma vez que trabalhavam por horas na rua vendendo drogas, independentemente do clima.

Mas é claro que eles também ajudaram a disseminar a popularidade dos pares de botas, pois os traficantes de esquinas eram grandes influenciadores de estilo em bairros periféricos e eram conhecidos por terem acesso a itens de luxo da moda.

E assim chegamos ao momento em que traficantes do Harlem, em Nova York, mudam completamente a história da bota Timberland.

Rimando e exercendo a profissão perigo

Na mesma época o Hip-Hop também ganhava força na cidade de Nova York e se tornava cada vez mais popular, com artistas negros que influenciavam o seu público de diversas maneiras, principalmente quando o assunto era moda.

Mas também é importante destacar que o estilo dos cantores de Hip-Hop tinha muita influência dos moradores de periferias, principalmente porque a maioria destes artistas havia nascido nesses espaços.

Portanto, quando o Hip-Hop transforma a bota Timberland em um item essencial de moda em seu meio, é porque os cantores do gênero se inspiram no estilo dos moradores de periferia, que por sua vez, se inspiram no estilo dos traficantes locais.

E assim a história da bota Timberland continua sendo escrita de uma forma totalmente diferente daquele que os donos da marca esperavam, pois elas viram um item chave no look de cantores de Hip-Hop e eles passam a incluí-las até mesmo em suas letras de músicas, como:

  • The Notorious B.I.G, que cantou “Timbs for my hooligans in Brooklyn” na música “Hypnotize”, lançada em 1997;
  • Nas, que canta “Suede Timbs on my feets makes my cipher complete”, na música “The World is Yours“, lançada em 1994.
  • Smif-N-Wessun, que cantou “Timbs all seasons for ass kickin’ reasons”, na música Wrekonize.

Bota do 2pac

A bota Timberland também ficou conhecida como bota do Tupac, pois o cantor, além de ter dominado a cena do hip-hop com suas letras profundas e visão única, influenciou a cultura da moda urbana da sua época.

Logo, suas escolhas de vestuário, incluindo a icônica bota amarela da Timberland, desempenhou um papel importante na definição de seu estilo distintivo.

Assim as famosa “bota do 2pac” era combinada com uma mistura de roupas que refletiam tanto sua origem quanto sua visão artística, com bandanas, camisetas largas e jeans desgastado.

Portanto, podemos dizer que a história da bota Timberland tem papel fundamental na construção da imagem do músico.

Afinal, elas se tornaram uma extensão da imagem de Tupac, simbolizando sua autenticidade e conexão com suas raízes.

E até hoje a imagem de Tupac usando as botas Timberland permanece como um ícone da cultura hip-hop e um testemunho do impacto duradouro que ele teve não apenas na música, mas também na moda e na expressão pessoal.

Leia também: O simbolismo das correntes na cultura hip‑hop

Preto e dinheiro são palavras rivais?

Engana-se quem pensa que o público negro, pobre, periférico e artistas de Hip-Hop não colaboravam para o crescimento financeiro da marca.

Entre 1990 e 2000, os lucros da Timberland foram de $ 80 milhões para mais de $ 500 milhões, com receitas ultrapassando  $ 1 bilhão em 2000, segundo a SEC.

E para reforçar que a população negra estava contribuindo para esse crescimento financeiro da marca, o canal de notícias Los Angeles Sentinel apresentou dados que revelavam que em 1993 os negros americanos gastavam em calçados mais do que os não-negros, com cerca de 50% dos seus gastos destinados a calçados e apenas 4% em compra de roupas.

E mesmo que os executivos das botas Timberland soubessem que os jovens negros eram os seus maiores consumidores, seja por influência de traficantes, de favelados ou de cantores de Hip-Hop, eles não tinham um intuito de abraçar esse público.

Filhos do descaso mesmo pós-abolição

O que deixou claro que eles não tinham o intuito de abraçar esse público foi uma entrevista dada pelo CEO da Timberland, Jeffery Swartz, em 1993, para o The New York Times.

Nessa entrevista ele disse que mesmo que o dinheiro de clientes negros “gaste bem”, ele não queria “construir seu negócio com fumaça”.

Outros trechos da entrevista também incomodaram os consumidores negros, como o fato de Swartz dizer que a marca estava diminuindo a sua distribuição para conseguir atender os seus clientes-alvos, dando a entender que os clientes-alvos eram, na verdade, pessoas ricas e brancas.

Na época, as declarações do CEO da Timberland foram comentadas por alguns editores de moda, como o da Revista The Source:

“Acho que eles pensam que se suas roupas forem celebradas na comunidade urbana negra, com todos os seus males, isso barateará suas marcas”.

história da bota timberland

Vaidade, ambição, munição pra criar inimigo

De fato, esse depoimento manchou a história da Timberland e incomodou a população negra que tanto prestigiava os pares de bota.

Para contornar a situação, Swartz foi a público para contar aos consumidores negros que a empresa fazia um investimentos multimilionários em grupos corporativos que atendiam pessoas carentes em cidades do interior.

Ele também citou uma campanha da marca chamada “Give Racism the Boot”, de 1993, dizendo que essa era uma prova que a Timberland respeitava e valorizava os seus clientes negros.

Essa situação fez a marca perceber que a sua popularidade entre os clientes negros não era um problema e nem mesmo uma moda passageira.

E na época, as declarações feitas posteriormente pelo dono da Timberland foram o suficiente para a comunidade negra não sabotar a marca e nem mesmo as Yellow Boots.

Já foram farsa, vamo contar a nossa história

Entretanto, entre 2006 e 2010 a história da bota Timberland passa por algumas dificuldades financeiras com suas vendas estagnadas e uma perda de 8% na receita, segundo registros da SEC.

Isso levou a marca a ser vendida em 2011 para o conglomerado de moda VF Corporation, dono de marcas como Vans e The North Face.

E foi então que a marca abraçou completamente a diversidade de seus consumidores, dando um novo capítulo à história da bota Timberland.

Por exemplo, em 2017 foi feita uma edição limitada com o cantor Nas, que no passado era um dos embaixadores não oficiais da bota no movimento Hip-Hop.

Um tempo depois as botas fizeram uma parceria com uma das marcas mais cobiçadas de street style e street wear, a Off-White.

Timberland é filho do gueto, assuma

Em 2023, para comemorar os 50 anos do Hip-Hop e das botas Timberland, foi criado um modelo especial dos pares, a Hip-Hop Royalty Boot.

Para confeccionar esse modelo a marca contou com as projeções de Chris Dixon, um homem negro que hoje ocupa o cargo de designer sênior de calçados da Timberland.

Chris se responsabilizou por trazer alguns significados da história da bota Timberland e do Hip-Hop, como:

  • um mural de grafite no Bronx que é dedicado ao criador do Hip-Hop, o Dj Kool Herc;
  • uma etiqueta verde reproduzindo uma placa de rua de Nova York na língua da bota e nessa placa está escrito Sedgwick Ave, que é o endereço do local da festa em que o Hip-Hop nasceu;
  • os cadarços da bota foram modelados em um aglet de cabo de microfone;
  • a etiqueta da bota foi criada para parecer com uma mesa giratória de DJ.

“O projeto Hip-Hop Royalty Boot é a maneira da Timberland de dar flores ao Hip-Hop e mostrar apreço pelo que eles fizeram pela marca.”, disse o designer sênior da Timberland sobre esse projeto.

De vergonha eu não morri, to firmão, eis-me aqui

A história da bota Timberland e todo o seu sucesso no mundo da moda provavelmente não seriam contados se a comunidade negra não tivesse visto nela um grande potencial e a tornado um dos seus itens fashions favoritos até hoje.

E mesmo que a marca saiba que não existe uma maneira de apagar os seus erros do passado com seus consumidores negros, é importante que atualmente ela reconheça que eles tiveram um papel fundamental na hora de tornar a empresa tão reconhecida como ela é atualmente.

Esse é só mais um exemplo na moda de uma peça que a comunidade negra adotou, ajudou a crescer e a se espalhar pelo mundo.

E o aprendizado que as outras marcas do mercado precisam levar com a história da bota Timberland é que ter o público negro como seu cliente-alvo não deve ser um motivo de vergonha, e sim de orgulho, pois eles podem te levar a lugares em que você nem imaginou que a sua empresa chegaria.

Conheça as músicas feitas por pretos usadas de referência neste artigo:

  • Gueto Ao Luxo – Karol Conka
  • Negro Drama – Racionais Mc’s
  • 1 Por Amor, 2 Por Dinheiro – Racionais MC’s
  • Vida Loka (Parte II) – Racionais Mc’s
  • Só Deus Pode Me Julgar – MV Bill
  • A Vida É Desafio – Racionais Mc’s
  • O Mundo é Nosso – Djonga part. BK
  • Ponta de Lança (Verso Livre) – Rincon Sapiência

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