Embora a Kenner seja considerada item de luxo na favela e tenha seu chinelo popularmente apelidado de Kenner de cria, inicialmente a marca foi criada e pensada para surfistas moradores da Zona Sul do Rio de Janeiro, ou seja, pessoas das classes A e B.
E daqui em diante você entenderá como a marca conseguiu conquistar esse novo público inesperado e, somente 34 anos depois, se reposicionou no mercado e assumiu seu posto de Kenner de cria.
“A Kenner é uma ode ao espírito do favelado.”
— FBC
Me apaixonei pelo público-alvo errado
A história da Kenner começa na Califórnia, com Peter Simon, que inspirado pelo estilo de vida jovem e praiano dos surfistas, criou esses calçados confortáveis e com palmilhas macias.
Assim, em 1988, as vendas da Kenner iniciaram no Rio de Janeiro, focadas inicialmente no público surfwear e rapidamente ganhou popularidade entre os surfistas, o que fez a marca expandir suas vendas para outras regiões.
No entanto, nesse momento, a Kenner também alcançou um público inesperado: os moradores de periferias.
O começo de uma nova era
A história da Kenner começa em 1988, no Rio de Janeiro, mas foi só em 2018 que a marca realizou sua primeira colaboração significativa com uma pessoa negra: o jogador Marcelo, considerado o melhor lateral esquerdo do mundo.
Embora essa colaboração tenha sido um marco, nesse momento a Kenner ainda não se posicionava como uma marca voltada para o público das favelas ou majoritariamente negro, mas foi a partir dessa parceria que surgiram algumas manifestações — ainda tímidas — como aliada da cultura negra.
- Em 2019, a Kenner colaborou com os rappers BK e Djonga.
- Em 2021, a colaboração foi com o músico Seu Jorge.
- Em seguida, em 2022, foi a vez do artista L7.
- Em 2023 a marca trabalhou com as irmãs Tasha e Tracie.
- Em 2024 com a rapper AJuliacosta.
Mas, nesse meio todo, em que momento exato a Kenner começou seu reposicionamento de marca para focar seu marketing, tom de voz e vendas para o público periférico?
Recalculando a rota
O reposicionamento da Kenner, marca originalmente focada no público surfista, começou a ganhar forma em 2022, quando a empresa decidiu oficialmente abraçar a periferia, que tanto a usava, e passou a focar nesse público-alvo como seu principal.
O primeiro sinal desse novo direcionamento foi a criação da editoria “Galeria Kenner” no Instagram.
Nessa iniciativa, a marca posta pinturas de artistas periféricos que retratam vivências da favela e incluíam a Kenner de cria em suas obras.
A primeira publicação foi uma arte de Priscila Rooxo, artista da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Em entrevista, Priscila comentou sobre suas pinturas:
“Eu retrato a vivência de mulheres jovens periféricas e o que mais podemos ver é a ligação delas com a Kenner.”
Espalhando a palavra do Kivah Pro
Um mês depois do lançamento da Galeria Kenner, em 2022, a marca lançou a linha de chinelos Kivah Pro, o que marcou um ponto decisivo no seu reposicionamento.
Embora o modelo Kivah já existisse, ele foi reformulado para esta nova linha que pela primeira vez na história da Kenner teve personalidades das periferias para participar diretamente de suas campanhas e publicidades.
Os escolhidos para essa virada de chave foram os dançarinos Aline Maia, Pablinho Fantástico e Sabrina Ginga, que gravaram todos os vídeos promocionais da linha Kivah Pro em comunidades, algo que reforçou a conexão da Kenner com a dança e o funk, elementos centrais na vivência das favelas brasileiras.
Aqui, em um de seus vídeos de divulgação, a marca destacou: “A Kivah Pro é arte, é funk, é moda, é pra todos os gêneros, é Brasil.”
Comunicação sob medida
Também foi a partir da Kivah Pro que a Kenner mudou seu tom de voz e adotou uma linguagem mais próxima da realidade periférica.
Um exemplo disso é uma das divulgações da Kivah Pro que dizia: “Muito mais que só ir cortar o cabelo, chamar os de fé pra resenhar na fila de espera já é o esquenta pro rolé de mais tarde. De cabelo alinhado e Kivah Pro.”
Ou seja, agora o Kenner de cria estava oficialmente no vocabulário da marca.
Toda essa nova abordagem sinalizou o exato momento do reposicionamento de marca da Kenner, que deixou de focar exclusivamente nos surfistas para abraçar a cultura periférica e torná-la parte central de sua identidade.
Na rua, na chuva, na favela
Além das campanhas e colaborações, a Kenner adotou a estratégia de se envolver profundamente no cotidiano da favela para associar sua marca às periferias, uma forma de reforçar ainda mais o conceito do Kenner de cria.
E a linha Kivah Pro continuou a ser o principal veículo para essa estratégia.
Essa abordagem foi evidente nos vídeos de campanhas e nas divulgações da marca, em que elementos do dia a dia da favela foram destacados.
Exemplos disso incluem:
- referências ao passinho;
- manter o cabelo na régua;
- lançar o reflexo no cabelo;
- dar rolê de moto com os crias;
- a estética de cria.
Tudo isso mostrado SEMPRE com o Kenner de cria no pé.
Ainda para essa estratégia, a Kenner trabalhou com as rappers My e Jaynashe, que formam a dupla ABRONCA.
Em uma de suas músicas, “Vivência de cria,” a dupla cita a Kenner: “Sou foda. Kenner no pé e a veste da Lala. Nós dita a moda, no ao vivo eu quero ver tu me peitar.”
Em entrevista, as cantoras falaram sobre a união com a Kenner e sobre citarem a marca em suas músicas:
“Quando pensamos em ‘cria de favela’, lembramos da Kenner no pé, dos amigos dançando e mandando passinho. Então, fica impossível não citar a marca em nossas composições.”
Com essas iniciativas, o reposicionamento de marca da Kenner se consolidou ainda mais, integrando-se de forma autêntica à cultura periférica e fortalecendo o conceito do Kenner de cria.
Afinal, ao adotar o cotidiano da favela como parte central de sua comunicação e campanhas, a Kenner se comprometeu com a valorização da cultura e da estética das periferias brasileiras.
Mais uma estratégia para conta
E os métodos para o reposicionamento de marca da Kenner e reforço do conceito de Kenner de cria continuaram, agora com a criação da editoria “Retratos de Kenner.”
Essa editoria começou em 2023 e tem como proposta trazer fotografias de diferentes fotógrafos de favelas do Brasil que capturam as vivências dentro de suas comunidades e registram como os chinelos da Kenner estão presentes nelas.
O objetivo é mostrar a autenticidade e a conexão da marca com a vida cotidiana das periferias, através do olhar de quem vive e conhece de perto essa realidade.
O primeiro a participar dessa editoria foi Angelo Pontes, fotógrafo da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Em entrevista, Angelo comentou:
“Enxergo [a Kenner] como parte de uma construção estética periférica. É a sandália que aguenta o tranco do corre e arremata o traje pra curtir o baile.”
A estratégia com o “Retratos de Kenner” permitiu mais uma vez que a marca reforçasse sua presença e relevância nas periferias, ao mesmo tempo em que celebrava a diversidade e a riqueza cultural dessas regiões.
Isso porque as fotografias, além de destacarem o estilo dos chinelos Kenner de cria, evidenciaram o trabalho de fotógrafos das favelas ao mesmo tempo que ajudaram na construção de uma narrativa de que a Kenner está integrada nas rotinas e ao modo de vida nas comunidades.
Além disso, essa estratégia mostrou como é possível criar um diálogo genuíno e respeitoso com as comunidades.
Um pé na Kenner de cria e outro nos festivais
Outra estratégia crucial para o reposicionamento de marca da Kenner foi sua presença em festivais voltados à cultura negra e periférica.
A primeira participação foi no REP Festival, conhecido por reunir grandes nomes do rap e hip-hop, em parceria com o rapper FBC, em 2022.
Nesse evento, a linha Kivah Pro mais uma vez foi o destaque e simbolizou a nova identidade da marca: o Kenner de cria.
Já em 2023, a Kenner participou do Faixa Preta Festival, um evento periférico realizado no Rio de Janeiro, organizado pelos moradores de comunidades.
Essa participação também reforçou a presença da marca nas comunidades e o seu compromisso com a valorização da cultura periférica e negra.
Ainda em 2023, a Kenner se uniu ao Festival BATEKOO, um evento que promove entretenimento, cultura e educação para a comunidade negra e LGBTQI+ do Brasil.
Para o BATEKOO, a marca delineou como seu objetivo “AQUILOMBAR,” ou seja, valorizar e potencializar a cultura negra e periférica, o que alinhou a importância da Kenner nesse processo.
Assim, através de ativações nesses eventos, o reposicionamento de marca da Kenner ganhou ainda mais força como um símbolo de resistência, estilo e autenticidade nas periferias brasileiras.
Reposicionamento de marca efetuado com sucesso ✅
É fato que durante muitos anos, a Kenner não olhou para a moda da favela e da periferia, afinal, a marca foi criada em 1988, mas só mudou seu posicionamento e olhou para esse público em 2022, ou seja, 34 anos depois de abrir as portas.
Mas é importante analisar como a Kenner entendeu quem realmente é seu público e investiu em recursos, profissionais e, principalmente, em moradores negros de periferias do Brasil para fazer seu reposicionamento de marca.
Afinal, conforme mostramos até agora, a marca criou campanhas, colaborações e parcerias que celebram e valorizam a cultura periférica, pontos que fortaleceram o seu vínculo com essas regiões e a destacam definitivamente como uma marca de cria.
Todas essas ações são um exemplo de uma marca que entendeu quem movimenta o seu negócio e veste sua camisa, ou melhor, o seu chinelo.
E esse reconhecimento e valorização do seu público vai além de aumentar a receita de uma empresa, ele colabora para sua presença de mercado e cria conexão genuína e duradoura com seus consumidores.
Neste cenário, em menos de um ano após o reposicionamento de marca da Kenner, eles foram para o Instagram comemorar o marco de 1 milhão de seguidores e celebrar com a mensagem “somos 1 milhão de crias.”
Esse momento registrou todo o sucesso do reposicionamento de marca da Kenner e mostrou como eles abraçaram seu público periférico e foram fortemente abraçados de volta.
Pirataria à vista
Conforme já falamos neste texto, dentro das favelas, o Kenner de cria é visto como um artigo de luxo, e sempre foi comum encontrar versões piratas dos chinelos circulando nessas áreas.
Portanto, a pirataria é um problema significativo para a Kenner, algo que ocorre principalmente por conta do valor alto de seus chinelos, que custam a partir de R$ 150,00.
Esse valor é consideravelmente elevado se comparado, por exemplo, às Havaianas, cujos modelos clássicos originais custam em torno de R$ 50,00.
E mesmo com a transição do público-alvo rico da Zona Sul do Rio de Janeiro para um público-alvo das classes D e E, a Kenner manteve seus preços altos.
Mas o reposicionamento de marca da Kenner teve um papel significativo na luta contra a pirataria.
Isso porque toda estratégia de reafirmar que a marca é destinada às pessoas da favela, principalmente através das redes sociais, criou um tipo de respeito, vínculo emocional e ainda mais admiração dos moradores das periferias com a marca.
Tudo isso fica evidente nos comentários das publicações no Instagram da marca, em que é comum ver pessoas falando que juntam dinheiro para comprar um par de Kenner de cria original.
E é esse misto de vínculo emocional, respeito e admiração que tem contribuído para a diminuição dos produtos piratas, já que os consumidores periféricos agora se sentem mais conectados à marca e valorizam a autenticidade dos produtos originais.
“A marca para mim é um mix de realização, conforto e luxo. Realização por a gente sempre querer ter, e quando conquista, ser especial.”
– Derxan, cantor da Baixada do RJ
O papel da música e da dança na história da Kenner
A dança e a música desempenharam papéis cruciais na formação da estética do Kenner de cria nas comunidades periféricas. Entenda abaixo como esses elementos culturais ajudaram a moldar a identidade da marca.
Os crias da VIP vão de Kenner
Antes mesmo da Kenner se posicionar como uma marca focada no público da periferia, a dança e a música já tinham feito isso por ela naturalmente.
E esses dois fatores foram cruciais e muito explorados pela Kenner para fazer sua virada de chave no seu reposicionamento de marca.
No quesito da música, FBC e VHOOR se destacam com a canção “De Kenner”, lançada em 2021. A letra da música retrata a conexão do Kenner de cria com a cultura periférica:
“De Kenner
Os cria da VIP vai de Kenner
Nove em dez no baile tão de camisa do Messi
Cyclone, bigodin’ finin’, corrente e Juliet
Da mesma cor pra combinar com o Kenner”
Em entrevista, FBC, músico e compositor de Belo Horizonte, disse que a letra “é uma ode ao espírito do favelado”.
Embora os trechos da música destaquem vários elementos que compõem o estilo chavoso de quebrada – cyclone, bigodinho fininho, corrente e juliet – a Kenner segue como destaque, tanto que é o título da canção.
E por ser um músico referência quando o assunto é cantar sobre a Kenner, em agosto de 2022, o FBC e a marca se juntaram por uma ação que distribuiu 125 pares de sandálias na comunidade Cabana do Pai Tomás, em Belo Horizonte, Minas Gerais.
“Eu não tinha falado pra ninguém que teria a ação. O caminhão [com as sandálias] chegou e a galera foi me encontrando. Foi muito lindo”, disse o MC.
Mas não foram apenas FBC e VHOOR que incluíram o Kenner de cria nas suas letras para se referir à vivência e à moda de quebrada.
Outros nomes de peso também rimaram com a Kenner em suas canções, como MC Luanna, Tasha e Tracie, Kayblack, Caio Luccas, TZ da Coronel, Puterrier, SD9, Derxan, Btrem e Chefin.
“Para mim, a Kenner conta um pouco da minha história e de onde vim.”
– Tasha sobre a Kenner
No funk, em especial, o barulho da batida do chinelo da Kenner começou a se confundir com a batida das músicas, o que criou o “barulho da Kenner” e uma sinergia única entre a marca e o estilo musical.
Mas isso é papo para dança.
Se ela dança [de Kenner de cria], eu danço
Não é exagero dizer que a Kenner é hoje o chinelo oficial dos funkeiros. Tanto é que o “barulho de Kenner”, a “batida de Kenner” e o “sapateado de cria” são termos amplamente usados quando falamos do chinelo e do ritmo musical.
O grande destaque nesse cenário é o grupo “Os Quebradeiras“, formado por Gustavo, Kauan, Rafael e Lucas, todos crias da periferia de Niterói, no Rio de Janeiro. Eles viralizaram ao dançar batendo os pés, quase num sapateado, com seus Kenner de cria.
Embora esse estilo de dança com o Kenner de cria não tenha sido criado pelos Os Quebradeiras — o jeito de dançar nasceu naturalmente nas periferias do Brasil e nos bailes funks —, o grupo se tornou a representação do som do chinelo no ritmo do funk.
Os seus vídeos, publicados nas redes sociais e sempre viralizados, mostram apresentações de danças em pontos turísticos do Rio de Janeiro e já levaram os meninos até mesmo para fazer o passinho em Paris, de frente para a torre Eiffel.
Deste modo, enquanto o funk dá voz às realidades das periferias, o barulhinho característico da Kenner de cria virou um movimento: o sapateado de cria, uma trend que bomba a cada dia mais nas redes sociais.
E a marca, ao reconhecer a importância e o impacto dessa conexão cultural, não hesitou em convidar os Quebradeiras para participações em divulgações oficiais do chinelo e até mesmo para sapetear dentro do escritório da Kenner.
Passando a limpo o reposicionamento de marca da Kenner
Em sua jornada do surf à periferia, a Kenner viu o seu chinelo se transformar em um símbolo de identidade e resistência cultural dentro das favelas.
Ao se reinventar como “Kenner de cria”, a marca reforçou a admiração que já tinha dentro das comunidades periféricas e celebrou a riqueza da cultura brasileira.
Como você viu ao longo deste texto, para toda essa movimentação de reposicionamento de marca, a Kenner apostou em campanhas e parcerias significativas.
Foi deste modo que eles reafirmaram o seu compromisso com a valorização das raízes culturais e mostraram que uma marca pode, sim, mudar completamente seu público-alvo e se tornar parte da história e do cotidiano de novos seus consumidores.
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